domingo, 14 de dezembro de 2014

Nem outono, nem inverno

Escrevo agora no shinkansen de Osaka para Hiroshima. Saímos bem cedo do hostel em que passamos a última noite no sul do bairro de Asakusa, bem perto da meca dos eletrônicos e fans da cultura pop japonesa: Akihabara. Comprei uma câmera na maior loja, Yodobashi, para registrar melhor os momentos da viagem. Comi um tsukemen* muito bom ontem à noite (educadamente fazendo muito barulho) com macarrão delicioso e caldo potente à base de porco. Digo que comi no singular porque as companheiras de viagem não conseguiram aproveitar muito bem. Carol ainda se recuperando do resfriado e Julia das maneiras ocidentais de comer com garfo e degustar silenciosamente a sopa. Foi ótimo para se esquentar antes de dormir muito bem para mais um dia on the road. 

Tenho tido uma relação complicada com o meu casaco de inverno. Sim, aquele que aguentou o inverno russo de dezenas de graus abaixo de zero. Ele é grande e volumoso e algumas horas eu me arrependo de o ter trazido, já que parece desnecessário. Ontem na caminhada para Akihabara eu me rebelei contra ele deixando no quarto do hostel e saindo só com um paletó mais leve e menos quente. O lamen foi, assim, providencial. Já hoje de manhã ele foi bem útil porque fazia um frio considerável às 6 e meia da manhã, quando saímos em direção à estação de Tokyo. Já deu pra perceber que não está nem muito frio, nem muito quente. 

A paisagem do país corrobora o meu argumento. Em Tokyo, não está nada parecida com a de quase 7 anos atrás, quando visitei o Japão pela primeira vez, já no final de Janeiro, ápice da estação mais fria do ano. Ainda há muitos resquícios do outono que ainda não acabou. Algumas folhas avermelhadas e amareladas na copa das árvores, um sol que ilumina e esquenta não escondido por nuvens cinzentas. Deu até para se avistar o monte Fuji da casa do João, em Kiyose, pequena cidade rural às margens da megalópole. Os 20 e poucos quilômetros de distância são percorridos em cerca de meia hora pelos trens que de maneira muito eficiente transportam milhares de passageiros. Vai ser um ótimo lugar para nós hospedarmos pois ndicará pistas para entender a relação entre moderno e tradicional, urbano e rural, que os japoneses resolvem de maneira tão estranha e extranha para a nossa lente ocidental. Caminhando pelo bairro, há um contraste entre os terrenos onde pequenos produtores plantam vegetais e os vendem na própria calçada e uma rua em que são expostas esculturas de artistas contemporâneos. Nas três quadras que formam o calçadão central da cidade há uma grande diversidade de restaurantes e optamos por um de tonkatsu para o almoço acompanhado pelo anfitrião. Decifrar o cardápio não é fácil e as escolhas às vezes são aleatórias, mas a comida tem sido sensacional. 

Voltando ao tema do casaco, o problema maior é o contraste entre as temperaturas externas e internas. Ao ar livre a temperatura em Tokyo anda em torno de 5 a 10 graus sem considerar o vento. Ao entrar nos lugares abrigados o casaco incomoda pelo volume e pelo calor que obriga à desconfortável tarefa de tirá-lo e carregá-lo. Agora mesmo no trem está tão quente que quase penso em tirar a malha que cobre a camiseta. Enfim, tudo isso pra dizer que ainda não é inverno, mas também não é outono.

A viagem de hoje começou com o frio da manhã, porém com um belo sol de inverno e o céu bem aberto. O monte Fuji estava belíssimo do lado direito do trem, sem nenhuma nuvem ao seu redor. Poucos minutos depois, mas muitos quilômetros à frente (trem-bala) começaram a aparecer nuvens um cenário de chuva recente, e casas com brancos nos telhados indefinidos entre gelo e neve. Um pouco mais à frente, a resposta: era neve. Riscos brancos eram vistos na horizontal pela janela e logo foi visível a paisagem branca, que foi cada vez se tornando mais predominante, a ponto de cobrir carros e árvores. Os bosques de pinheiros da região lembravam o Natal que sempre imaginamos. De repente, não havia mais neve nem nuvens e o sol voltou a brilhar. Acho que essa vai ser o clima da viagem até o fim, variações entre essas categorias dicotômicas: rural - urbano, sol - neve, centro - periferia. Só sei que eu aproveito dessas indecisões para fazer o que gosto: experimentar todos os deliciosos sabores. Um chá quente vai tão bem quanto um sakê gelado (e vice-versa), analogamente para o par sushi - lamén (esse não vice-versa!). Se Levi-Strauss (aliás, grande admirador do Japão) mostra como a passagem da alimentação do cru para o cozido realiza a passagem da natureza para a cultura em diversos mitos, fico com o já mitologizada ideia brasileira de antropofagia: seja em um polo ou no outro, comemos todos.

* tsukemen é um lamen em que o macarrão vem frio e fora do caldo que é quente e bem forte.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

No caminho para Tokyo ou perdido no limbo do tempo

Aeroporto Hamad em Doha, 12 de outubro de 2014. Ou seria dia 11. Não sei mais. Só lembro que saí de Mogi pouco antes da virada do dia 10 para o dia 11. O voo para Doha saiu no horário previsto das 4 da manhã. A viagem durou 13 horas, mas chegamos aqui, eu, Carol e Julia depois das 10 noite. Já passou das 3 da manhã e ainda faltam 4 para o voo para Haneda, em Tokyo. O aeroporto de 16 bilhões de dólares é grande e tem muitas lojas, mas não é fácil de dormir. Tem muitas luzes, muita gente e barulho, além de cadeiras que são largas na medida certa para você sentar com muito conforto, mas que também tem braços que impedem todos que não sejam contorcionistas de deitar. Tem uma sala com cadeiras para se espreguiçar, mas é mais quente que uma sauna e os roncos mais altos que o motor do avião. Pelo menos achamos um café com um sofá confortável que, entre um gole e outro é usado para uma rápida deitada. As tâmaras que vem com o café e a que estavam servindo de degustação na loja são deliciosas, bem diferentes das enjoativas do Brasil. A comida genérica centro asiática da praça de alimentação que misturava falafel, kibe, samosa e butter chicken era boa e serviu de jantar. Ou ceia. Não sei mesmo. Já fazem algumas horas que enquanto vagamos pelas lojas do aeroporto somos saudados com good morning. O aeroporto daqui é tão internacional quanto o novo de Guarulhos, só trocando as havaianas, camisas da seleção e cachaça por camelos, enfeites arabescos e roupas para mulheres que só deixam expostas os olhos. Eu diria que é um aeroporto bem Copa do Mundo. O café acabou mas continuo deitado. Ele era bem estranho, parecendo um chá, com cardamomo e açafrão bem salientes, servido em um belo bule um pouco psicodélico e nada prático. Amanhã (ou hoje, não sei) chegamos para dormir em Tokyo. A temporalidade da viagem é bem estranha. Espero que normalize no sábado, já no horário japonês. De algum modo tudo isso parece um processo que transforma sua percepção do tempo que permite que você possa enxergar as coisas de outra maneira do outro lado do mundo. Entre a quarta a noite e o sábado de manhã passa um tempo indeterminado cuja indeterminação é acentuada pela falta de condições necessárias para se dormir. São dois voos que atravessam muitas zonas de fuso horário durante o dia, que claro, parece durar pouco como dia, mas muito no seu vagar na poltrona do avião. Entre filmes, musicas e chicken or pasta, o tempo passa e para. Os aeroportos com as mesmas lojas e produtos parecem apontar para essa tempo estático. Tomara que esse impasse temporal seja resolvido com um belo sol nascente...